Ilha de São
Pedro, Aldeia Indígena do Povo Xokó, 19 de abril de 2013
CARTA
DO POVO XOKÓ
O
povo Xokó, habitante primeiro das terras da Caiçara, nas
margens do Rio São Francisco (Opará-
rio mar), aproveitando o período de comemorações do dia do Índio, na aurora do
século XXI, torna pública esta Carta que retrata em poucas linhas, sua história
de lutas; suas angústias e intenções.
Apesar
de habitar estas terras, desde tempos imemoriais, sua posse e uso tranquilos,
são recentes. Muitas foram às violências que ao longo de séculos ameaçaram e
espoliaram nosso povo, chegando quase ao ponto de nos dizimar por completo.
Conflitos com os conquistadores portugueses, com o Estado brasileiro que nascia
e já nos ignorava, com seus representantes, fazendeiros e grandes proprietários,
que insistiam e nos colocar à margem da formação da cultura nacional e de suas
políticas de desenvolvimento. Tentativas de integração forçada que não
reconheciam nossa identidade e procuravam nos integrar de forma que já não
fossemos o Xokó que fomos, somos e queremos continuar a ser. Seja através das
armas, das doenças, da religião de Doroteu e de outros tantos ou mesmo de uma
educação que negava nossa cultura, nossa língua, nossa forma de compreender e
habitar estas terras, sempre fomos estranhos à pátria que nascia e se desenvolvia
em nosso território originário.
Apesar
das diversas tentativas de nos assegurarmos da posse tranquila e harmônica de
nosso território e da manutenção de nossa cultura ancestral, que passou por
conversas e negociações com o Imperador Dom Pedro II, e com vários presidentes
e governantes que o sucederam e que nos reconheceram em suas leis, continuamos
sendo ignorados e violentados em nossos direitos.
Fomos
levados à guerra que no século XX, ameaçando dizimar nosso povo, acabou por
uni-lo e fortalecê-lo. Expulsos da Caiçara, berço da nossa gente, por pessoas
que se dizem representantes da lei e da justiça, as vinte e duas famílias que
lá habitavam, no entorno de tamarindos e mangueiras, bem como as quatro
famílias que habitavam o Belém; com barcos e a nado atravessamos rumo à Ilha de
São Pedro.
As
vinte e duas casas que lá ficaram, foram destruídas pelos fazendeiros.
Destruíram tudo o que foi construído pelos nossos antepassados, incluindo o
terreiro e o cemitério primitivo. Da Caiçara hoje só resta o nome e as
lembranças históricas. Não bastasse a violência imposta pelos fazendeiros,
também sofremos com as interferências realizadas em nosso rio, a exemplo da
Usina Hidrelétrica de Xingó que mudou
sua brutalmente o volume e a
força de suas águas. A lagoa que durante vários anos foi fonte de sobrevivência
do nosso povo, na colheita do arroz e na pesca, hoje está seca e cheia de mato.
A Caiçara não é mais a mesma e seus filhos choram pelo que fizeram com ela.
Atravessamos o rio que em outros tempos era só
fartura e alegria, mas que por meio de projetos que não respeitam suas leis
naturais, está sendo esvaziado e aterrado. Um rio que chegava a ter uma
profundidade de trinta a quarenta metros, e no qual se navegava com grandes
embarcações; hoje, depois das interferências feitas pela mão do “homem
civilizado”, expõe bancos de areia e pouca profundidade. Este é o legado
deixado por engenheiros e doutores, que não nos escutaram e tudo destruíram. Dói muito ver toda essa história destruída pela força
do homem.
Bravos
guerreiros e guerreiras morreram por lutar para viver enquanto povo livre e com
jeito próprio de entender a vida. Tudo isso nos tornou experientes, pois a dor
machuca, mas também ensina. Ensina que há sempre uma grande distância entre as
belas palavras gravadas com tinta nos documentos legais e a sua aplicação na
vida prática de nosso povo.
A
chegada na Ilha de São Pedro, que até
então era reconhecida como terra das Missões – ocupada pelos jesuítas e
missionários que no século XVII construíram a Missão de São Pedro - e a sucessão
de conflitos que se seguiram, acabaram por desencadear os processos legais que
levaram o então Presidente da República, senhor Fernando Collor de Mello a
assinar, em 24 de dezembro de 1991, o Decreto n 401/91 que reconheceu a
demarcação da área indígena Caiçara realizada pelo órgão tutor FUNAI, em 1988. Contudo, foi só em março de
1993 que ocorreu uma reunião entre o Ministério Público Federal de Sergipe, a FUNAI,
as Lideranças Xokó e os fazendeiros, onde foi acordado que a União pagaria
pelas benfeitorias construídas no território indígena Caiçara. Finalmente, nos
dias 22 e 23 de maio de 1993, os bravos guerreiros Xokó tomaram a posse definitiva da área
Indígena Caiçara, marcando uma nova fase da vida de nosso povo.
Apesar
das mazelas e das violências, sobrevivemos enquanto povo e nação. Nossas lutas
e reivindicações, somada a de outros povos e grupos que sempre lutaram para que
todos tivessem o direito de viver com autonomia, habitando este mundo que nos
abriga a todos, fizeram com que novas leis e convenções fossem aprovadas e
começassem a se efetivar na prática. No
âmbito internacional, a Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais,
de 1989, lembrando “a particular contribuição dos povos indígenas e tribais à
diversidade cultural, à harmonia social e ecológica da humanidade e à
cooperação e compreensão internacionais”, declara ao longo de seus quarenta e
quatro artigos a importância da promoção efetiva dos direitos sociais,
econômicos e culturais desses povos. A mesma resolução ressalta que devem ser
valorizados os costumes, tradições, instituições e demais traços que compõem a
identidade social e cultural dos povos tradicionais por meio de políticas
públicas diferenciadas que atendam às especificidades dos povos indígenas. Nesse
sentido, se faz necessária e com urgência a implementação de uma Escola
verdadeiramente diferenciada, de uma saúde indígena também diferenciada e de
qualidade. É preciso que nosso povo tenha seus direitos constituídos e sagrados
garantidos, bem como o seu direito a um meio ambiente saudável.
Esta
resolução assim como as Leis que a ratificam e fortalecem no âmbito nacional,
estejam elas presentes na atual Constituição Federal, a exemplo dos artigos
215, 216 e 231 que tratam dos vários direitos indígenas, ou estejam elas
presentes na lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), estão impressa em
tinta nos documentos oficiais, mas precisam de fato ser implantadas na prática.
Estamos atentos a estes direitos e dispostos a trabalhar e lutar para que os
mesmos se efetivem. Este é o momento atual vivenciado pelo povo Xokó, momento
tão ou mais importante que os momentos passados, que nos trouxeram até aqui.
Contudo, a longa experiência de
descumprimento de acordos e de retrocessos na aquisição e efetivação de nossos
direitos fez com que ficássemos permanentemente atentos para a situação, não
apenas formal de nossos direitos fundamentais, mas para a sua efetiva
implementação.
É
a partir dessas ideias que surgiu o I
Seminário Indígena Xokó. Esperamos que este Seminário, que buscou integrar
os vários setores governamentais e não governamentais, seja um marco que sirva
para reforçar o interesse em implementar de fato, nosso direito à participar e
à contribuir para a melhoria do Estado de Direito no Brasil e mais especificamente no Estado de Sergipe,
haja vista que o povo Xokó é a única nação indígena sobrevivente do genocídio
realizado nos últimos 513 anos de
conquista dos colonizadores. Esperamos que as diversas Secretarias de Estado
cumpram seu papel na efetivação da legislação vigente. Esperamos também que a
Universidade sirva como elo de ligação entre estes setores, e se efetive
enquanto um espaço de debate, de crítica e de elaboração de projetos que nos
auxiliem na luta pela melhoria das condições de vida do povo Xokó e da
sociedade brasileira.
Finalmente,
aproveitamos este espaço para divulgar que o II Seminário Indígena Xokó está
agendado para os dias 18 e 19 de abril de 2014. Essa ocasião será de
fundamental importância para que o povo Xokó possa fazer uma avaliação dos
avanços obtidos a partir deste primeiro encontro e possa projetar parcerias
para reforçar nossas lutas futuras.
Saudações
Indígenas Xokó.
NOSSO FUTURO COMEÇA AGORA...
Nossa
história nos ensina que as palavras nem sempre se concretizam, mas é importante
que ideias e propostas orientem nossa ação presente com vistas a um futuro
melhor. Nesse sentido, a partir dos debates realizados sistematizamos a seguir
os seguintes pontos centrais a serem trabalhados e implementados pelo povo Xokó
e seus parceiros, sejam eles a Universidade ou os diversos órgãos
governamentais e não governamentais.
Dentro
das Políticas Especiais para Mulheres,
a secretária de Estado de Políticas para Mulheres, Maria Teles, enfatizou a necessidade
haver um estreitamento nos laços entre o governo e as mulheres Xokó no intuito
de promover ações que busquem a autonomia financeira para as mulheres da nossa
comunidade. Neste sentido, faz-se urgente a representação do povo Xokó junto a
Coordenadoria de Políticas para Mulheres.
Em
relação à Educação, que esteve
representada pela Coordenadora do Núcleo de Educação Indígena e Quilombola,
Maria Conceição, ficou clara a necessidade de um maior comprometimento da
Secretaria de Estado da Educação no que tange a implantação de uma Escola
Indígena verdadeiramente diferenciada, conforme prevê a legislação em vigor no
Brasil. As ações realizadas até agora por esta Secretaria, a exemplo do que foi
apresentado por meio de publicações, foram importantes para o nosso povo, mas
já não são suficientes para o momento atual de nossa história. Nossas crianças
e jovens precisam ter, no ambiente escolar, um contato de qualidade com os
conteúdos propostos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, do Ministério da
Educação (PCN/MEC), amparado em um profundo conhecimento da sua própria
cultura. Além disso, precisam buscar uma formação universitária, dentro das
demandas da comunidade, sem com isso perder sua identidade. Pois, qual é o
propósito dessa formação se não for para o bem estar de nosso povo? Quem tem
condições de dizer qual educação diferenciada é necessária para os Xokó? Essas
são algumas das perguntas que necessitam de um diálogo mais apurado para se
chegar às respostas concretas.
No
que diz respeito aos Direitos Humanos,
o secretário de Estado dos Direitos Humanos, Luis Eduardo Oliva, se comprometeu
em buscar os meios legais e servir como via de acesso aos demais órgãos
governamentais sempre que os direitos fundamentais do Povo Xokó estiverem sendo
ameaçados e/ou violados.
Em
se tratando da Saúde Indígena, o
debate promovido durante este 1º Seminário Indígena Xokó foi extremamente
necessário, pois até dezembro de 2012 nosso povo era assistido pelo Estado de
Alagoas, devido a um acordo firmado entre os governos de Alagoas e Sergipe.
Contudo, desde o início de 2013, o povo Xokó está desassistido pelos dois
Estados. Sabemos que o processo de transição não é fácil, mas também temos
consciência de que a Secretaria de Estado da Saúde precisa assumir sua
responsabilidade perante o Povo Xokó. Neste sentido, é preciso estabelecer, por
meio de diálogo com o governo, quais são as necessidades de média e alta
complexidade, além de priorizar a atenção à saúde de mulheres, crianças e
idosos.
A
Codevasf, por meio do seu diretor-administrativo,
Antonio Porfírio, ficou responsável em promover um debate sobre quais os
projetos que estão previstos ou em andamento na região do Baixo São Francisco e
seus possíveis impactos para os Xokó. Porém, a temática não foi tratada
conforme o previsto, deixando novamente nossa comunidade à margem da discussão
e sem informações suficientes para possamos nos organizarmos e nos posicionarmos
sobre este importante tema. A Codevasf
aproveitou a ocasião para divulgar a doação de três kits de Irrigação à
Comunidade Xokó e colaboração da instituição para a criação de Abelhas.
Em
se tratando da Universidade Federal de
Sergipe, o Reitor Dr. Angelo Roberto Antoniolli, ressaltou a importância de
se promover o estreitamento das relações entre a Universidade e a sociedade em
geral e particularmente da importância de induzir e direcionar trabalhos de
pesquisa e extensão na aldeia Xokó. O reitor ressaltou que tais trabalhos e
pesquisas devem ser desenvolvidos nas mais variadas áreas, tanto no campo da
saúde, quanto no campo da educação e das ciências da terra, fomentando projetos
e estágios de final de curso que aproximem os professores e estudantes
universitários do povo Xokó, propiciando apoio técnico aos projetos de
interesse comuns a serem aí desenvolvidos. Ressaltou ainda que a Universidade é
um espaço de reflexão permanente que pode servir para fomentar o diálogo entre
os vários setores envolvidos no processo, sejam eles governamentais, acadêmicos
ou da sociedade civil.
Por
fim, aproveitamos este momento singular para agradecer a presença de um homem
que, ao longo dos últimos anos, esteve constantemente ao nosso lado, nos
defendendo, apoiando e também aconselhando. Um homem de fala mansa e de
atitudes concretas, merecedor de nosso profundo respeito. Ao professor Luiz Alberto dos Santos, nosso sincero
e humilde agradecimento por compartilhar conosco mais um momento de nossa
história.
Aracaju, 20 de abril de 2013.
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