quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Artigo apresentado no III Colóquio do GPCIR

Índios em Sergipe: O resgate da identidade na terra da Caiçara


Rose Almeida[1]
Marcos Paulo Lima²

Acabou aquela história de chamar de patrão,
aqui a terra é de todos, não é para negócio, é para trabalhar.
Essa terra é um bem histórico, é a terra dos Xokó.
 É um bem de raiz.
(Pajé Raimundo, Xokó, 74 anos)
Resumo
Havia em Sergipe no século XIX aproximadamente cinco aldeias indígenas que desapareceram das documentações oficiais e nada fora escrito sobre elas, sobretudo o que teria lhes acontecido. Os Xokó são povos remanescentes advindos de vários grupos indígenas que no decorrer do tempo passaram por miscigenações, perdendo suas características culturais e fenotípicas de seu grupo de origem. A presente pesquisa tem por objetivo analisar a trajetória do resgate da identidade do povo Xokó na terra da Caiçara, localizada na cidade de Porto da Folha, Sergipe. A perda gradual do espaço geográfico da aldeia São Pedro, como também é conhecida essa região, comprometeu a organização social dos Xokó, fortemente ligada aos seus conceitos míticos. Não só a perda do seu território alterou os aspectos culturais desses índios, mas o processo de anulação dos seus valores culturais também corroborou para seu efetivo desgaste. Destituídos de seus territórios tradicionais, os grupos indígenas deixaram de ser considerados como coletividades, sendo reconhecidos individualmente como “remanescentes”. Não obstante a expropriação de seu território foi tomado dos Xokó outros valores. Esses povos foram perdendo progressivamente sua identidade, sua forma de organização politica, econômica e social, suas crenças e práticas religiosas, enfim sob a égide de povoar terras devolutas foi tirado dos índios da caiçara sua sistemática cultural.
Palavras Chaves: Índios, Resgate, Identidade e Afirmação Cultural


Résumé
Au XIXe siècle, il y avait dans le Sergipe environ cinq villages indiens. Ils ne sont cependant pas mentionnés dans les documents officiels et rien n'a été écrit à leur sujet, en particulier sur ce qui leur est arrivé. Il reste aujourd´hui les Xoko qui, provenant du métissage de divers groupes indigènes, ont perdu les caractéristiques culturelles et phénotypiques de leur groupe d'origine. Notre recherche vise à analyser comment ces indiens, peuplant les terres de Porto da Folha dans le Sergipe, peuvent réussir malgré tout à préserver une identité. La diminution progressive de l'espace géographique du village Saint-Pierre, la région étant également connue sous ce nom, a compromis l'organisation sociale des Xoko, fortement liée à des concepts mystiques. Cette perte de territoire modifiant  certains des aspects de la culture xoko s´est de plus cumulée à un processus de destruction de leurs valeurs culturelles. Privés de leurs territoires traditionnels, les groupes indigènes ont cessé d´être reconnus en tant que collectivités, les indiens individuellement n´étant plus considérés que comme une « survivance ». Mais l'expropriation ne s´est pas limitée au territoire, elle a aussi concerné les valeurs mêmes des Xoko qui ont perdu progressivement leur identité, leur forme d'organisation politique, économique et sociale, leurs croyances et pratiques religieuses, En bref, sous le motif d´occuper des terrains vacants, c´est tout leur système culturel qui leur a été retiré.
Mots-clés : Indiens de Sergipe, Sauvetage, Identité, Affirmation Culturelle et Territoriale.


[1]Autora: Acadêmica do curso de História da Universidade Federal de Sergipe, bolsista do PIBID sob a orientação da professora Célia Cardoso Costa. Email: rosetraquina@hotmail.com
² Co-autor: Acadêmico do curso de História da Universidade Federal de Sergipe, membro do Grupo de Pesquisa Cultura, Identidade e Religiosidade pela Comissão de Estudos “Índios em Sergipe”, sob a orientação do professor Antônio Lindvaldo Sousa.



Introdução
Este artigo tem como objetivo analisar o resgate da identidade do povo Xokó na terra da Caiçara localizada na cidade de Porto da Folha, Sergipe.  A metodologia aplicada nesta pesquisa foi o levantamento de fontes bibliográficas e orais. O referencial teórico utilizado foi: Avelar Araújo Souza Júnior, Beatriz Gois Dantas, Maria Thétis Nunes, Araci Lopes da Silva, Hélia Maria de Paula Barreto, Nobert Elias entre outros.
Havia no século XIX em Sergipe, aproximadamente cinco aldeias indígenas que desapareceram das documentações oficiais e nada fora escrito sobre elas, sobretudo o que teria lhes acontecido. A pesquisadora Beatriz Gois Dantas no final dos anos 60 e inicio dos anos 70, partiu para os arquivos sergipanos, especialmente o Arquivo Histórico de Sergipe, onde com dedicação, paciência e apoio de sua equipe foi organizando e catalogando importantes documentos sobre os povos indígenas que habitavam Sergipe.
A história da Caiçara, como ainda hoje é popularmente chamada à região habitada pelos remanescentes indígenas sergipanos, se mistura a história do município de Pão de Açúcar em Alagoas, tendo em vista a proximidade entre os municípios.  Porto da Folha em Sergipe era chamado de Jaciobá (“espelho da lua” em guarani). A história do município alagoano, diz que a região era habitada por índios da tribo Urumaris, que foram expulsos por índios Chocós da Ilha de São Pedro, em Porto da Folha, que ao atravessarem o rio  denominaram o local também de Jaciobá, atual Pão de Açúcar. No baixo São Francisco, os Xokó foram encontrados também nos municípios de São Braz (AL), Porto Real do Colégio (AL) e Pacatuba ( AL).
Os Xokó são povos remanescentes advindos de vários grupos indígenas que no decorrer do tempo passaram por miscigenações, perdendo suas características culturais e fenotípicas de seu grupo de origem. Muitos dos remanescentes que vivem hoje na Ilha de São Pedro, por lá já habitavam a época da expropriação de suas terras pelos fazendeiros, presenciaram ainda crianças a expulsão de suas famílias da região da Caiçara.
E mesmo após a reconquista de suas terras, muitos percalços ainda assolaram o cotidiano do povo Xokó, principalmente no que se refere ao resgate de sua identidade e de sua dinâmica cultural, pois não só a perda de seu território alterou a rotina dessa comunidade, mas o processo de anulação dos seus valores culturais contribuiu para seu efetivo desgaste.

Espaço Territorial:
O território dos índios Xokó está localizado às margens do rio São Francisco, na ilha de São Pedro, também conhecido popularmente como terra da caiçara no município de Porto da Folha Sergipe, fazendo limite com a cidade alagoana de Pão de Açúcar, compreendendo na sua totalidade 4.317 hectares.  As terras dos Xokó foram demarcadas como área indígena desde o inicio do século XVIII, quando o governo português delimitou como território indígena várias áreas no Brasil.
(...) dê toda providência necessária a sustentação dos Párocos e índios do Brasil sobre que se tem passado repetidas ordens e se executam pela repugnância dos Donatários e Sesmeiros que possuem as terras dos sertões. Hei por bem, e mando que a cada uma missão se dê uma légua de terra em quadra para sustentação dos índios e missionários com declaração que cada aldeia, se há de compor ao menos de cem casais. (Alvará de 23 de novembro de 1700. BIBLIOTECA NACIONAL, 1944:67).
O espaço geográfico que atualmente corresponde ao Estado de Sergipe, principalmente os vales dos seus rios até as fozes, foi ocupado em tempos históricos por inúmeros povos indígenas que manifestaram formas peculiares de organização sócio-cultural, levando-se em consideração a grande diversidade de povos e línguas faladas, presentes num mesmo território, tendo como elemento singular sua pluralidade, onde muitas destas línguas foram extintas com seus povos. Estima-se que até os primeiros anos da invasão colonial teriam vivido em terras sergipanas diversos grupos, entre eles: Os Tupinambá, dominavam a faixa do litoral Sergipano, os Kiriri mais ao Sul de Sergipe, os Boimé, Kaxagó, Katu, Xocó, Romari, Aramuru e karapotó ao Norte de Sergipe próximo ao Rio São Francisco.
DANTAS (1997:12) relata ainda quando os Xokó chegaram à Ilha de São Pedro:
(...) as referências mais antigas a índios Xokó referem-se a grupos situados nas imediações do rio São Francisco (...) Somente no final do século XVIII encontraram-se em fontes escritas referências aos grupos Xokó... gravados sob diferentes formas: Schocó, Xocó, Choco, Chocoz, Ciocó, Ceocose. Sugerem quase sempre associados a espaços missionários. Há registro de Xokó em tempos passados, num espaço geográfico que vai de Sergipe ao sul do Ceará. (...)
            Importa salientar que desde o século XVI o nordeste foi dividido e distribuído em sesmarias, com exceção das terras indígenas, submetidas a ordens religiosas.  Assumiu a catequese dos íncolas sergipanos os franciscanos, carmelitas, jesuítas e capuchinhos. O crescimento da economia açucareira suscitou por mão-de-obra escrava, que no primeiro século da colonização era formada por índios que eram capturados e enviados a diversos engenhos da Bahia e Pernambuco.
Observa-se que o processo civilizador proposto e implementado durante a colonização do Brasil, foi assumido tanto pelas estruturas políticas vigentes quanto pela igreja católica, a violência era medida estratégica para a destruição das populações autóctones implicando em sua eliminação gradual e avassaladora.
            Um dos mais radicais processos de informalização desse tipo foi a destruição dos rituais que davam significado à vida e sustentavam modelos de vida coletiva entre os povos mais simples. No processo de colonização e no trabalho missionário por europeus. Talvez fosse útil examinar isso brevemente. Um dos mais extremos exemplos da desvalorização de um código que fornece significado e orientação a um grupo em ligação com a perda de poder do seu             grupo portador é a eliminação das classes superiores nas Américas Central e do    Sul, no decorrer da colonização e imposição do cristianismo pelos espanhóis e portugueses. (ELIAS, 1997, p. 77).
            José Bonifácio de Andrada e Silva, figura central no processo de constituição do Brasil independente, endereçou em 1823 à Assembléia Nacional Constituinte os “Apontamentos[1] para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil”. Estes apontamentos, sugerindo um conjunto de medidas de “que se deve lançar logo mão para a pronta e sucessiva civilização dos Índios...” (p. 77).
A facilidade de domesticá-los era tão conhecida dos missionários, que o Padre Nóbrega, segundo refere o Vieira, dizia por experiência, que com música, e harmonia de vozes se atrevia a trazer a si todos os Gentios da América. Os Jesuítas conheceram, que com presentes, promessas, e razões claras e sãs expendidas por homens práticos na sua língua podiam fazer os Índios bárbaros o que deles quisessem. Com o Evangelho em uma mão, e com presentes, paciência e bom modo na outra, tudo deles conseguiam. Com efeito, o homem primitivo nem é bom, nem é mau naturalmente, é um mero autômato, cujas molas podem ser postas em ação pelo exemplo, educação e benefícios.(p. 72)

A expedição vitoriosa liderada por Cristóvão de Barros a Sergipe del Rey, teve como objetivo precípuo dominar e cativar os índios, tendo como corolário a fundação da cidade-forte de São Cristóvão e a distribuição de sesmarias aos que contribuíram para tal feito.
Ademais, os que conseguiram escapar ao aprisionamento ou à morte se espalharam pelo sertão, atravessando o rio São Francisco. Com a incorporação do território sergipano ao sistema colonial português, via extermínio e massacre, as antigas terras indígenas passaram a serem divididas e distribuídas em forma de sesmarias entre os colonos brancos, muitos ligados a Casa da Torre, sendo ocupadas gradativamente pelas plantações de cana-de-açúcar e lavouras de subsistência, como também pelas pastagens de gado voltadas aos mercados consumidores da Bahia e Pernambuco (NUNES, 1989:179).
Acrescenta DANTAS:
(...) Muitos índios foram aqui escravizados e levados para as povoações dos portugueses localizadas na Bahia. Numa revolta de escravos, aí ocorrida em 1568, índios fugiram à escravidão e voltaram para o rio Real, sua terra de origem. Esses escravos indígenas constituíam segundo fontes da época, metade dos habitantes de uma aldeia de mil almas o que dá a dimensão da escravização dos índios de Sergipe ainda no terceiro quartel do século XVI. (DANTAS, 1991:33,34).
Destarte, eram constantes os conflitos no município de Porto da Folha, onde habitavam os Xokó. Em 1845, foi criada a Diretoria Geral dos Índios, o que não acarretou estabilidade a região. As terras estavam nas mãos de famílias fazendeiras poderosas e os índios continuavam segregados e explorados.

As Missões Religiosas
Sobrepõe-se ainda analisar outro importante aspecto durante esse período, o marcante papel das missões religiosas junto às populações indígenas do São Francisco, cumprindo a resolução do Governo Imperial de confiar o domínio e a catequese aos capuchinhos italianos, chegando à missão de São Pedro em 1849, representados pelo Frei Doroteu de Loreto que passou a residir no convento ao lado da igreja de São Pedro, recebendo apoio dos fazendeiros locais até o fim de sua permanência em 1878, hoje o que resta do convento são ruínas destruídas pelo tempo, a igreja ainda se mantém de pé e somente depois de dois séculos passou por algumas reformas.
 Frei Doroteu configurou-se nesse processo como personalidade ambígua, determinando medidas drásticas à população indígena da Ilha de São Pedro, como a proibição dos batuques, danças e bebedeiras, obrigação de trabalhos forçados e castigos. Ao tempo em que a permanência do Frei na ilha, inibia as ações dos coronéis de tornar as terras indígenas devolutas, garantindo-lhes legalmente sua expropriação, decerto sua influência não assegurou a posse efetiva da terra aos indígenas, todavia ele contestava a ideia da sua inexistência. Assim comenta Figueiredo (1981, p. 90): “Com a morte, em 1878, de frei Doroteu, índios Xokó passam a ser expulsos da Ilha de são Pedro, a toda hora invadida por donos de terra e seus prepostos, o bacamarte comandando as invasões".
Dom Pedro II em visita a Ilha de São Pedro recebeu dos índios reivindicações acerca dos maus tratos, da violência e da expropriação de suas terras pelos fazendeiros:
Largamos de Pão de Açúcar às dez. Ás dez e quarenta fomos para São Pedro Dias e às onze e dez o vapor tornou a seguir. Haverá na aldeia 100 índios, e muitos portugueses. Aqueles queixam-se destes que lhes aproveitam as terras dizendo o diretor interno, Frei Doroteu, capuchinho, que os índios são indolentes, e quando plantam, dá terras aos pobres às vezes sem exigir renda alguma. (...) algumas mulheres pediram-se para sair de lá o vigário encomendado, Frei Doroteu, e os mesmos índios dizem que ele é mau diretor, porém bom vigário, por ser muito religioso. (...) Ouvi que s índios queixam-se de frei doroteu por ele lhes impedir os batuques, bebedeiras e os obriga a trabalhar, e foi ele quem reparou a Igreja agenciando esmolas. (Fragmento do Diário da Viagem de Dom Pedro II ao Norte do Brasil, encontrado no livro de tombamento do Conselho de Cultura de Sergipe, pp.133-135).
A perda gradual do espaço geográfico da aldeia São Pedro comprometeu a organização social dos Xokó, fortemente ligada aos seus conceitos míticos. O espaço da aldeia tem uma relação com o sagrado e a sua perda implica em falta de referencial para as demais atividades do grupo. Não só a perda do seu território alterou os aspectos culturais desses índios, mas o processo de anulação dos seus valores culturais também corroborou para seu efetivo desgaste.
Depoimento de José Cândido (102 anos) baseado nas histórias que suas tias contavam apud BARRETO (2010):
Iam dançar o Toré escondido (...) Era na beira da lagoa de Pão de açúcar, os primeiros terreiros (...) Jesuíno Abreu, Inocêncio Pires, Manoel Lapada, Quirino e Hipólito vinham dançar escondidos (...) frei Doroteu pediu que mudasse porque não dava certo, estava interrompendo o expediente dele (...) Passaram a dançar embaixo dos imbuzeiros da central (...) Foram para a Serra do Sentado, 500 metros do lado de baixo, do lado do Pajéu de Rubina. No terreiro, mais ou menos uns 200 metros de extensão (...) faziam comida, cozinhavam e dançavam o Toré.

Em 1853 o presidente da província de Sergipe, José Antonio de Oliveira e Silva, solicitou ao imperador a extinção da Diretoria Geral dos Índios em Sergipe, decretada extinta em 06 de abril do mesmo ano, através do decreto nª 1.139. Convicções corroboradas e embasadas no relatório enviado pelo seu antecessor Amâncio João Pereira Andrade ao então Secretário Geral dos Negócios do Império:
Possuindo os índios de Porto da Folha e seus descendentes uma légua de terra, excelentes para criação de gado, não há ali uma casa que se possa notar abastada, sendo todos esses indivíduos, que só chegam ao número de 260, pobríssimos e miseráveis (...) Vivendo eles assim há muitos anos, e sendo povoação composta por esse modo, não há razão alguma para que volte à antiga condição de aldeia; regresso este com que nada ganha a Província nem mesmo homens, que ainda hoje indevidamente se chamam índios (...) uma vantagem que desaparecesse a raça indiana (sic) por meio do cruzamento, desaparecendo também seus péssimos costumes (APES, G 243).
Desta feita, Sergipe passou a afirmar a inexistência de índios em seu território, amparado na lei iniciou-se então a tomada de suas terras, negando radicalmente sua existência e sob o pressuposto de mestiçagem se abstiveram de garantir-lhes assistência, transformando suas propriedades coletivas em latifúndios privados. O aviso número 172  do Ministério dos Negócios do Império de 21 de outubro de  1850, determina incorporar aos próprios nacionais as terras dos índios que já não vivem aldeados, mas sim dispersos e confundidos na população civilizada (APES, PAC.425).

Perda da Identidade
Destituídos de seus territórios tradicionais, os grupos indígenas deixaram de ser considerados como coletividades, sendo reconhecidos individualmente como “remanescentes”. No final do século XIX os registros já não fazem referência a índios em Sergipe, são apresentados como seres do passado, extintos. Nos levantamentos censitários aparece a categoria caboclo, uma nova forma de identificação imposta aos habitantes das aldeias.  (DANTAS, 1991: 51).
Ser índio é ter orgulho de sua história, tentar ficar o mais próximo da natureza, acreditar em sinais de Deus através de pássaros e visões. O ritual faz parte da nossa vida, pois através dele resgatamos a nossa história, sabemos realmente o que significa ser índio, sentimos a força de Deus e a presença do Espírito Indígena. Preservamos os rituais sagrados: danças, costumes com trajes indígenas, pintura do corpo e o toré. (Amanda e Nayane. Povo Xokó: História de Luta e Resitência, MEC/SEED).

 Santos Júnior (2011: p.36) descreve que em 1879 foi solicitada ao Governo Central, pela Câmara Municipal da Ilha do Ouro, sede da Vila, uma légua de terras próprias do “extinto” e “abandonado” aldeamento de São Pedro. Pelo contexto dos conflitos entre índios e brancos, como também entre os próprios coronéis, o processo de outorga dos terrenos indígenas pela Câmara Municipal durou quase uma década, até que, em 12/12/1887, o Ministério da Fazenda declarou a concessão das terras do antigo aldeamento de São Pedro à municipalidade. A partir de 1888, os lotes foram dispostos ao aforamento, tendo sido arrendados pelos vorazes fazendeiros. Dentre ele se destacava o influente Coronel João Fernandes de Brito, que em 1897 apareceu como foreiro de cinco dos oito lotes do antigo aldeamento, compreendendo a Ilha de São Pedro, a Lagoa da Caiçara, Lagoa do Pão de açúcar e Brandão, Lagoa Grande e um terreno encravado em tal conjunto.
Não obstante a expropriação legal, porém imoral, de seu território, foram tomados dos Xokó outros valores. Esses povos foram perdendo progressivamente sua identidade, sua forma de organização politica, econômica e social, suas crenças e práticas religiosas, enfim sob a égide de povoar terras devolutas foi tirado dos índios da caiçara sua sistemática cultural.
Ao longo desses anos o povo indígena Xokó vem construindo um mundo com maturidade organização e prazer. Mesmo assim, fomos chamados de índios atrasados e incapazes. Essa violência nos doeu muito e lutamos uma batalha que valeu muitas vidas, povos inteiros foram destruídos. Grandes homens e mulheres morreram por acreditar em viver enquanto povo livre e com jeito próprio de entender e viver a vida. Tudo isso nos tornou experiente, pois, a dor machuca, mas também nos ensina. (Apolonio Xokó)
Segundo LARAIA (2009:59) apud Sahlins, Harris, Carneiro, Rappaport, Vayda e outros que, apesar das fortes divergências que apresentam entre si, concordam que: “Culturas são sistemas (de padrões transmitidos) que servem para adaptar as comunidades humanas aos seus embasamentos biológicos. Esse modo de vida das comunidades inclui tecnologias e modos de organização econômica, padrões de estabelecimento, de agrupamento social e organização política, crenças e práticas religiosas, e assim por diante”.
Para sobreviver e continuar como descendentes dos antigos habitantes do Brasil, boa parte teve que fugir, como foi o caso dos Xokó, que vivem com os Cariris em Alagoas, ou silenciar. (BARRETO: P.42).

Depoimento de José Cândido (102 anos) apud BARRETO (2010):
João Porfirio botou pra fora meu avô, Manoel Soares. Ele foi para Pacatuba, pra Mata das Araras e Pilicão. De lá veio pra saúde, em Neópolis (...) E meu pai chamava-se Marcionilo, irmão de José, Júlia e Manoel. Ia pra lá, pra cá, caçando meio de vida (...) E a mãe de meu pai chamava-se Maria Gata. Vivia carregando os milho dentro de um saco de corda, chamado aió. (...).
Outra grande preocupação do povo Xokó são as mudanças ocorridas às margens do Rio São Francisco, considerado a maior fonte de riqueza para os ribeirinhos e que por conta da transposição de suas águas, tem prejudicado a vida econômica e social da região. Do São Francisco era retirado parte da proteína consumida pelo grupo, hoje a pescaria é escassa e os prejuízos são inúmeros.
Atualmente as áreas destinadas ao cultivo é pouco significativa, predominando a produção de milho e feijão, a rizicultura, cultivo tradicional, não está sendo realizada, já que as cheias habituais do “Velho Chico” não ocorrem desde 1994, ano do fechamento da barragem de Xingó. O que prejudicou inclusive práticas culturais, pois nos dias dos fechamentos das lagoas para colheita do arroz se dançava o Toré e festejava-se muito. Hoje o que interliga a ilha de São Pedro à Caiçara pela via terrestre, é um pequeno córrego onde passam pequenos veículos, via anteriormente trafegável por grandes embarcações.
A Caiçara hoje só o nome, a lagoa que durante vários anos foi fonte de sobrevivência do nosso povo, na colheita do arroz e na pesca do peixe, Hoje passando em volta dela, não parece ser a lagoa da Caiçara, seca e cheia de mato. Se passaram apenas 33 anos da luta, e estamos aqui no mesmo lugar lembrando daquele 09 de setembro de 1979. Onde era um rio, hoje encontramos uma vegetação rasteira coberta pelo calombi. (Apolônio Xokó).
A produção de cerâmica era um dos símbolos demarcatórios da identidade do povo Xokó, que sem estímulo deixou de existir, o aproveitamento nas terras do baixo São Francisco das argilas e sua transformação em diversos objetos, era prática rentável e disseminadora da cultura indígena local, o trabalho da artesã e seu universo simbólico deixou de existir.
Depoimento de José Nilo apud BARRETO (2010):
No verão era pescar, panelar, carregar lenha na cabeça e nos animais (...) uma parte fazia panela no inverno, mas era sacrifício (...)  O barro para bater precisa estar seco para virar pó. (...) Toda terça-feira, uma base de oito canoas, carregdinhas, chegava, baixinha, pelo rio. Quando não dava pra trazer tudo, voltava outra viagem. Na faixa de umas quinze casas na Ilha, que fazia. Cada casa com duas ou três mulheres que faziam.

Dos Conflitos ao Resgate da Terra e Identidade
A despeito de todos esses conflitos envolvendo “homens poderosos”, os índios Xokó reagiram e insatisfeitos procuravam reverter a situação. Ao longo da história eles reagiram de formas diversas às dos brancos que lhes tomaram as terras e lhes impuseram outro modo de vida. Lutas, fugas e ataques, como os que fizeram à cidade de São Cristóvão em 1751 e 1763, sã algumas das formas de expressão da resistência dos índios de Sergipe (DANTAS 1991:51).
Em relação à reação dos índios aponta Felisbelo Freire:
(...) a ordem pública foi seriamente perturbada pelo assalto que os índios fizeram, em número de três mil, à cidade de São Cristóvão. As desordens nas aldeias sucediam-se. Os índios revoltavam-se contra seus capitães-mores e fugiam de umas para outras, tornando-se preciso medidas enérgicas como as que foram postas em prática para trazer a obediência. Daí nasceu o levante de 1751, que pode ser vencido pela guarnição da capital (FREIRE, 1977:207).
 Em 1888 empreenderam-se em infrutíferas expedições ao Rio de Janeiro, com intuito de reaver a posse de suas terras, tendo como representante da comunidade Manuel Esteves dos Anjos, Lourenço Marinho, Jesuíno Serafim de Souza e Manuel Pacífico de Barros e os índios Antônio Venâncio Ribeiro, Francisco Mathias de Souza e Inocêncio Pires. Em 1917, instigados pelo desprezo dado a sua causa e pela morte do Coronel João Fernandes de Brito, retornaram ao Rio de Janeiro em busca de suas reivindicações há muito suscitadas. E mais uma vez não obtiveram êxito, tendo em vista o poder que exerciam os coronéis sobres às autoridades, o que enfraqueceu e dispersou os indígenas, onde boa parte foi morar na aldeia dos Kariri em Alagoas e outros se espalharam por outras regiões, como Mocambo, Pão de Açúcar, Penedo, Carrapicho, Itabaiana e Aracaju. Foram muitos os perseguidos que, fugindo das diversas formas de violência tiveram que abandonar sua terra, seu povo e sua cultura.
Depoimento de José Cândido (103 anos) apud BARRETO (2010):
Nóis plantava 3 alqueires de arroz. E uma e meia era para pagar aos Brito. Fiz uma dívida de 5 mil réis. E corria juro de 5, de 10. Aí disse a Almeida e Joca: Tanto que trabalhei e fiquei sem comer com meus filhos. E ainda disse: Tenho fé em Deus em ter um meu (pedacinho de terra e um cavalo). Um dos dois contou ao coronel Antônio Brito que mandou me chamar... e na conversa falou... Coroné, se falei certo o senhor apóia se quiser. Se falei errado por amor de deus me perdoe. E mais adiante conta da ordem que recebeu. – Tem quinze dias para desocupar a casa.
Afirma Souza Júnior (2011:39) que no decorrer do processo de expropriação legal do seu território, os remanescentes Xokó tiveram de ocultar sua descendência indígena, assumindo-se como caboclos, sertanejos, vaqueiros ou cabras do sertão (...). Contudo os Xokó não desistiram da luta pela terra, e alguns dos seus representantes dirigiram-se mais uma vez a Capital Federal, em 1964, porém, a reivindicação de posse da Ilha de São Pedro não foi novamente atendida. 
Falando sobre os remanescentes ressalta DANTAS (1997:8-12): (...) ser índio é um modo de identificação social e o social não se define pelo biológico (...) desse modo, os Xokó, como muitos outros grupos indígenas do Brasil, particularmente no Nordeste, apesar do tipo físico e da cultura não corresponderem ao estereótipo de índio para o senso comum, identificam-se como índios e têm o sentimento de pertencerem a um grupo de referência muito definido: a comunidade indígena. (...) o que se conhece sobre os Xokó é resultante do encontro e desencontro entre índios, negro e brancos. Encontro marcado por interesses diversos, por trocas, alianças e conflitos ao longo do tempo.
As terras até então aforadas aos fazendeiros, foram vendidas em 1963 a Elizabeth Guimarães Brito, filha coronel João Fernandes de Brito, com a aquiescência do Prefeito de Porto da Folha, Pedro Xavier de Melo e do Governador João Seixas Dória. Em setembro de 1978 os Xokó resolveram cercar a Caiçara e apesar das diversas intimações judiciais, em 1979 os remanescentes Xokó decidiram transferir sua comunidade da Caiçara e do Belém para os 96 hectares da Ilha de São Pedro.
Depoimento do Sr. Raimundo José, o pajé, BARRETO (1984):
Em 1978, João Brito escolheu um candidato a vereador (Gavião) e queria que o povo votasse nele. Veio atrapalhar e depois melhorar a situação. O povo da Caiçara se reuniu e decidiu não votar nele. Os Brito resolveu trancar tudo. Não se planta mais o arroz e não se faz o artesanato de louça. Conversamos sobre o que fazer. Nois vai pra onde? Tem a Ilha de São Pedro que é criatório de gado... Como vai pra ilha? Como? Vamos cercar a Ilha. Só havia a igreja e cemitério. Compramos o arame. Veio  rebuliço. Um monte de processo em Porto da Folha contra os Xokó. Quando intimado, ia todo mundo. Acabaram nossas roças, e as comunidades por fora nos aplaudia. E foram nossos irmão na época...Até sabonete vinha. As crianças sofria com muriçoca, mas fome não...O sofrimento foi uma coisa extremosa, mas vencemos com os poder de Jesus Cristo.
 Em 1988 a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) reconheceu os direitos do povo Xokó sobre suas terras e o Governo Federal através do Decreto 401 de 24 de dezembro de 1991, homologou a sua efetivação como área indígena e somente em maio de 1993, após anos de reivindicações, foi garantido legalmente à população indígena Xokó a reintegração definitiva dos hectares da Caiçara, momento celebrado até os dias atuais com muita festa. 
Em 1999 lhes foi entregue as Fazendas Rancho Bom, Belém e São Geraldo, sendo gradativo o processo de devolução até março de 2003, quando conseguiram reaver a Fazenda Maria Preta. Todo dia 09 de setembro, comemora-se na Caiçara o seu “Dia da Independência”, data alusiva ao dia da invasão da Ilha de São Pedro em 1979.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em Sergipe a situação do indígena não foi diferente do que acontecera no resto do Brasil, a sistemática supressão dessa cultura foi um fenômeno nacional do qual Sergipe não se fez exceção. O povo Xokó configura-se como única memória coletiva da presença de índios no Estado de Sergipe reavendo enfim o direito sobre seu território, todavia a luta em busca de reconhecimento, resgate e reafirmação de sua dinâmica identidade cultural é contínua, merecendo, contudo o devido apoio dos seus, da comunidade acadêmica, das diretrizes institucionais e da população de modo geral.
É sobremodo importante assinalar que os problemas sociais que circundam a vida do povo Xokó nos dias de hoje são inúmeros, e ainda longe de serem suplantados, serviços como o de saúde, saneamento básico e de educação são ainda muito precários. Atualmente são em média 80 famílias residentes na ilha de São Pedro, alguns parentes moram em Aracaju, no município de Nossa Senhora do Socorro, ou localidades vizinhas a Porto da Folha. A comunidade possui uma escola, o Colégio Estadual José Brandão de Castro, um CRAS – Centro de Referencia Assistência Social, duas Associações: Associação Indígena do Povo Xokó e Associação das Mulheres Indígenas Xokó e uma igreja, a Igreja de São Pedro que resistiu, também com muita luta, as intempéries e ao descaso dos detentores de poder.
Durante mais de cem anos os índios Xokó tiveram sua identidade negada, muitos foram perseguidos e submetidos a diversos tipos de atrocidades, contudo,  a luta dos Xokó em reaver a Caiçara foi aos poucos mudando a rotina dessa comunidade, uma luta não somente pela retomada de suas terras, como também em favor do resgate de sua identidade e de sua sistemática cultural.


[1] Apontamentos para a Civilização dos índios brancos do Império do Brasil, encontra-se na coletânea organizada por Otavio Tarquínio de Sousa, José Bonifácio (Biblioteca do Pensamento Vivo, Livraria Martins Editora, São Paulo, 1944, p. 67-93).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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